segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Nem Clark Kent, nem Lex Luthor

Pois bem, quem me conhece sabe o quão vidrada em séries sou eu.
A última que me enlaçou em seu enredo foi Breaking Bad pelo caráter realista de seus personagens, pela maneira de mostrar que as pessoas são boas e más, que todos hora somos Clark Kent, hora Lex Luthor.

No entanto, há tempos atrás assisti uma entrevista dada pelas atrizes Samira Wiley (Poussey) e Natasha Lyonne (Nicky) de Orange is the New Black para o Rafael Cortez, e elas simplesmente arrasaram. Pensei: preciso assistir!!!

Pra minha surpresa encontrei o mesmo elemento de Breaking Bad que tanto me agradou e MUITO MAIS. É um universo feminino de histórias, conflitos, família, drama, ou seja, já gostei. E além de tudo isso ainda traz de maneira nada sutil a coisificação das pessoas nas instituições – assunto que SEMPRE me inquietou.

Vamos por partes: do caráter realista, por que nos chocamos tanto? Porque eu, pelo menos, cresci assistindo novela da Globo onde o vilão era muito vilão, e o mocinho, obvio, muito mocinho. A percepção era sempre de que as pessoas são muito puras ou muito diabólicas e isso é uma mentira sem precedentes. Todos temos dentro de nós os dois lados, todos temos momentos em que sentimos raiva, frustração, angústia, coisas extremamente negativas. Mas vivemos – pelo menos eu tento – deixando aflorar os aspectos positivos da personalidade pra sermos mais felizes, vivermos em um mundo melhor.

Lembro perfeitamente de quando estava lendo Harry Potter e as Relíquias da Morte uma personalidade antes nunca conhecida de Dumbledore começou a surgir, rumores de que ele era ganancioso, ambicioso, frio.... O pessoal no ato começou a criticar o personagem (e a autora, coitada), enquanto eu só pensava: mas isso é GENIAL. Ele é de verdade, uma pessoa que sente o que sentem todas as outras.

Assistindo Breaking Bad isso – além de um roteiro absurdamente bem tramado – me encantou. Nem o Tuco, o mais enlouquecido de todos, é totalmente mal. Quando se tratava de sua família ele era o responsável, o protetor. Não há como encontrar um vilão na série, muito menos um mocinho, porque cada qual tem seu momento, como na vida real.

Em Orange is the New Black é assim. Conforme as histórias das mulheres são contadas paralelamente à sua estadia na prisão, é impossível não simpatizar com todas. Cada qual teve seu trauma, seu conflito, seu motivo para estar ali. Aí um dia desses falei disso pra uma pessoa conhecida e a primeira coisa que ela me disse foi: pois é, mas a televisão mostra como se tivéssemos que esquecer que elas estão ali por um motivo, nenhuma foi presa injustamente, não se pode comprar a manipulação pregada.

E é aqui que entra a coisificação do indivíduo. Nenhuma ali foi presa injustamente, todas estão respondendo por crimes que cometeram, e por isso elas deixam de ser gente? Em uma cena o Mr. Caputo – diretor do presídio – orienta os agentes penitenciários a nunca chamarem as mulheres pelo nome, mas sim de “detentas”, assim elas entendem que são um rebanho que tem que ser tocado e nada mais.

Ontem ainda assisti um episódio onde uma detenta idosa começa a causar problemas devido a sua condição psicológica e a solução encontrada pelo presídio é conceder-lhe a liberdade por misericórdia, o que nada mais é do que lançá-la à rua refém de sua própria sorte para não mais ser problema do estado.

Até que ponto isso é ficção? Até que ponto não é assim que as instituições tratam as pessoas? Não quero entrar aqui em um discurso sobre o sistema carcerário, porque nem de longe é esse o objetivo, mas é impossível não traçar esse paralelo. Há algum tempo vi a notícia do lançamento do livro "Presos que Menstruam" da jornalista Nana Queiroz, narrando absurdos com o fato das mulheres presas não receberem absorventes. ABSORVENTES estavam sendo negados a presidiárias. Os comentários da notícia: tem que negar mesmo, se quisessem estrutura não deveriam escolher a vida do crime... E por aí ia. O discurso equivocado já começa no "escolher". A pessoa não acorda e pensa: "deixa eu ver o que eu vou fazer hoje, assistir televisão ou roubar um banco?" O reducionismo nessa análise só deixa a própria análise mais difícil. As pessoas a partir do momento que fogem do que lhes é esperado deixam de ser vistas como pessoas e passam a ser estatística, números, dados, COISAS.

Esse caráter desumanizado das análises tem tomado grande força, e isso é um fator de extrema preocupação. Saindo do ambiente onde a pessoa paga por um crime, pois muita gente tem uma dificuldade imensa de entender que, mesmo ali, as pessoas continuam sendo pessoas, falemos então de uma escola. Essa semana mesmo foram vinculadas várias notícias falando de escolas particulares negando vagas para alunos com deficiência. Por que? Porque infelizmente muitas escolas enxergam essas crianças como uma coisa, uma coisa que exige esforço, adaptação, atenção. Uma coisa que dá trabalho e foge da rotina. Chocante? Pois é, imagina pra quem é classificado como tal.

O sistema capitalista de maneira geral coisifica as pessoas. Em um local onde se trabalha com metas, se você não as bate você não é bom, independente das outras qualidade que você possa ter. Se você é muito competente, mas tem outra pessoa que também é e faz teu trabalho pela metade do valor, você é substituído. O valor – não financeiro, mas moral – tem ficado de lado a partir do momento que as pessoas são apenas resultado, apenas lucro, apenas uma planilha de custo/benefício.

Isso, pra finalizar, culmina nas relações de poder estabelecidas em todos os meios. Em Breaking Bad, por que Walter White passou a gostar de ser Heisenberg? Porque se sentiu poderoso, respeitado, ouvido, seguido.

Em Orange is the New Black a cozinha é disputada pelos grupos, pois aquele que a tem faz o que quer. Os banheiros das detentas não tem portas, porque elas precisam encaram todos os dias a humilhação de fazer suas necessidades fisiológicas na frente de qualquer um. Além de que Mr. Healy, o orientador machista e homofóbico tem como suas prediletas aquelas que não se comportam contrariamente ao que ele acredita ser certo. Com as que lhe incomodam ele lança mão de castigos físicos e morais abusando do poder que tem para fazer isso. Ou seja, ou as detentas aprendem a lidar com as relações de poder que permeiam o ambiente, ou suas vidas se transformadam em um verdadeiro caos.

Gestores do mundo todo pregam a gestão democrática e participativa. É só digitar no Youtube a palavra “coaching” e se deliciar com vídeos e mais vídeos de discursos cheios de inovação quando o assunto é gestão. E na prática? Na prática as instituições estão cada vez mais cheias de gestores autocráticos e totalitários, porque para fazer uma gestão democrática é preciso que o ego e a supervalorização das relações de poder sejam postos de lado, é necessário saber ouvir o outro verdadeiramente, é necessário saber a hora de seguir em frente ou de se admitir que errou, é mais do que necessário não querer ser destaque. 

Em uma formação que participei há anos atrás quando comecei minha carreira de gestora, ouvi uma frase que ficou na minha cabeça: um local onde o gestor é eficiente ele é o único que não aparece, quando o gestor é o foco a gestão é ineficiente. Isso teria servido para o Heisenberg, para o Gus, serve para o Mr. Caputo, para o Mr. Healy, e para qualquer outra pessoa que ache que desumanizar as pessoas e abusar da relação de poder com relação a elas leva alguém para algum lugar.


Depois dizem que séries são perca de tempo. São não. Pra mim são maneiras de analisar as coisas de um ponto de visa mais divertido. 



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